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Distrações Cotidianas e Sonhos parte I.

Atualizado: 30 de set.

A vida desperta inicia-se no momento em que abrimos os olhos pela manhã e retomamos nossa rotina diária — trabalho, estudo, cuidados com a casa, com os filhos, ou mesmo o tempo destinado ao lazer. Em geral, seguimos percursos semelhantes dia após dia: o mesmo trajeto para o trabalho, as mesmas tarefas domésticas, os mesmos compromissos familiares e sociais. Ao final, repousamos a cabeça no travesseiro e, conforme nosso estado psíquico e orgânico, podemos recordar fragmentos dos sonhos na manhã seguinte, anunciando o fechamento de mais um ciclo que tende a se repetir.

Embora cada sujeito viva sua rotina de forma singular, a vida cotidiana é atravessada por uma ordem comum, sustentada por exigências culturais e sociais. Trabalhar, estudar, cuidar da família ou buscar estabilidade são papéis que se impõem como necessidades, ainda que carreguem, em muitos casos, a marca do desejo de corresponder a expectativas externas.

Entretanto, entre essa repetição diária, há brechas que se apresentam como “distrações”: momentos de descanso, de prazer ou de fuga da rotina. São experiências que permitem ao sujeito buscar satisfações específicas de acordo com seus desejos inconscientes — seja para experimentar felicidade, seja para aliviar a tensão e, em alguns casos, para esquecer as dificuldades enfrentadas no trabalho, nos estudos ou na vida doméstica. Nesses instantes, manifesta-se a tentativa de conciliar a rigidez da vida cotidiana com a pulsão de prazer que insiste em emergir, revelando a dinâmica entre o princípio do prazer e o princípio da realidade, tal como apontado por Freud.


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A rotina cotidiana nem sempre se organiza conforme nossos desejos. Ela é atravessada por fatores externos — sociais, culturais, ambientais — e também pelo modo singular de funcionamento da estrutura psíquica de cada sujeito. Assim, diante de uma mesma situação, as reações podem variar de forma significativa. Por exemplo, um homem que tem seu carro fechado por outro motorista pode reagir com agressividade, enquanto outro, na mesma circunstância, mantém o controle. Da mesma forma, uma mulher exausta com as demandas do lar pode descarregar sua hostilidade nos filhos, ou um homem endividado pode recorrer à bebida como tentativa de esquecer momentaneamente seus problemas.

Essas respostas ilustram que, para além dos acontecimentos externos, é a vida psíquica que dá forma e sentido às experiências, produzindo modos distintos de lidar com frustrações, desprazeres e sofrimentos.

Os fatores externos, muitas vezes, escapam ao nosso domínio — seja pela força da natureza, pela condição de finitude humana ou pela complexidade das relações sociais. No entanto, a maneira como cada sujeito se posiciona frente a essas contingências revela o trabalho constante entre as exigências do princípio da realidade e as forças pulsionais inconscientes que buscam satisfação. É nesse entrelaçamento que emergem tanto os sofrimentos cotidianos quanto as tentativas de distração, de alívio ou de busca de prazer.

Assim, nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro. Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito, embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes. (Freud 1927, p.85).

Sabe-se que as distrações assumem um caráter singular, pois estão relacionadas às forças internas que impulsionam cada sujeito. Não se tratam apenas de atividades realizadas por necessidade, mas do significado que produzem para quem as vivencia. Um homem que sai para beber em uma balada, por exemplo, pode estar tentando esquecer o término de um relacionamento doloroso, enquanto outro, em comportamento semelhante, busca aliviar o peso de uma semana desgastante no trabalho. Assim, ainda que os atos externos possam parecer iguais, as motivações internas e os fatores externos que os sustentam são únicos em cada ser.

Em paralelo a essas distrações singulares, estão os sonhos. Do ponto de vista da psicanálise freudiana, o sonho representa a realização de um desejo inconsciente, ainda que de forma disfarçada. Freud distingue o conteúdo manifesto — aquilo que o sonhador recorda e narra ao despertar — do conteúdo latente, que corresponde aos significados ocultos e recalcados, revelados pela análise. Nesse sentido, o sonho condensa impressões da vida desperta, misturando acontecimentos do dia com desejos inconscientes, permitindo ao sujeito acessar simbolicamente aquilo que não poderia emergir de modo direto.

Assim, tanto as distrações cotidianas quanto os sonhos revelam a tentativa do psiquismo de lidar com as tensões entre o princípio do prazer e as exigências da realidade, expressando, cada um a seu modo, o singular trabalho do inconsciente na vida de cada sujeito.


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O sonho não obedece a uma cronologia de tempo, ele não reproduz simplesmente fatos recentes da rotina do sonhador, mas pode trazer acontecimentos traumáticos, reprimidos da tenra infância.

Nos sonhos, a vida cotidiana, com suas dores e seus prazeres, suas alegrias e mágoas, jamais se repete. Pelo contrário, os sonhos têm como objetivo verdadeiro libertar-nos dela. Mesmo quando nossa mente está repleta de algo, quando estamos dilacerados por alguma tristeza profunda, ou quando todo nosso poder intelectual se acha absorvido por algum problema, o sonho nada mais faz do que em entrar em sintonia com nosso estado de espirito e representar a realidade em símbolos. (Freud 1900, p.45).

Dentro do que foi exposto até agora, podemos pensar que grande parte do que fazemos na vida está atravessada por distrações. Algumas delas são buscadas de maneira consciente, enquanto outras são movidas por forças inconscientes, variando em intensidade conforme a necessidade do sujeito de afastar-se da realidade.

As distrações podem desempenhar um papel importante em determinados momentos da vida cotidiana, funcionando como um refúgio diante de sofrimentos imediatos. Porém, do ponto de vista psicanalítico, é fundamental reconhecer que esse alívio é apenas momentâneo: cedo ou tarde, o sujeito precisará refletir sobre o conflito ou enfrentá-lo, já que a fuga constante não elimina o mal-estar.

Quando as distrações se tornam excessivas, sobretudo quando associadas ao uso de substâncias, surge o risco de que o vício leve à destruição do corpo, do psiquismo e, consequentemente, das relações sociais. Podemos imaginar, por exemplo, alguém que inicialmente sai para beber nos finais de semana, buscando esquecer a dureza da semana de trabalho. Com o aumento das pressões e das dificuldades cotidianas, essa prática se estende aos dias úteis, até que a pessoa perde o controle, passa a faltar ao trabalho ou comparecer embriagada, revelando que a distração deixou de ser um escape e transformou-se em sintoma.



Por isso, tornar mais consciente as escolhas relacionadas às nossas formas de distração deveria ser uma tarefa diária. O mesmo vale para os sonhos, que, longe de uma interpretação religiosa, podem ser compreendidos sob o olhar científico inaugurado pela psicanálise freudiana. Freud mostrou que o sonho tem uma função terapêutica: é a expressão do inconsciente, trazendo à tona desejos recalcados e oferecendo, de modo simbólico, uma narrativa sobre nossa vida desperta e onírica.

A partir do autoconhecimento, torna-se possível construir uma vida psíquica, orgânica e social mais saudável. Esse processo implica revisitar a própria história subjetiva, enfrentar medos, angústias e experiências de perda. A psicoterapia, inclusive em sua modalidade online, pode ser um espaço privilegiado para esse encontro do sujeito consigo mesmo.

E você: já refletiu sobre quais são as suas distrações e de que maneira elas impactam sua vida?


Bibliografia:

Sigmund, Freud. O Futuro de uma Ilusão, o Mal – Estar na Civilização e outros trabalhos. Rio de Janeiro. Ed. Imago. Rio de Janeiro.

Sigmund, Freud. A Interpretação dos Sonhos (I). Rio de Janeiro. Ed. Imago. Rio de Janeiro.

 
 
 

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